sábado, outubro 21, 2006


"Sem qualquer vestígio de estresse"
Diário de Pernambuco, Recife, 24 de setembro de 2006. Beleza. F3.
Análise do artigo à luz da psicossociologia

July Mary Rolim Cordeiro
Psicológa pela UFPE,pós-graduanda pela UNICAP, especialização Intervenções Clínicas.

O artigo tem pouco conteúdo escrito, mas leva uma página inteira com fotos ilustrativas nas quais há moças em aparente relaxamento físico (e talvez mental), imersas em banheiras espumantes ou sendo massageadas por profissionais. A reportagem traz em destaque – com letras cor de laranja – justamente o que poderia ter sido considerado, antes da contemporaneidade, como extravagante: tomar banho de café, chocolate e baunilha, etc.
Mais abaixo, em letras menores, explica-se o que se pretende oferecer: um tratamento para o stress por meio do banho de imersão em essências com aromas de alimentos.
Os detalhes são de estarrecer os desavisados ocupadíssimos da vida moderna, a começar pelo tempo de duração: "Um ritual que dura cerca de três horas, feito com água e essências gustativas". Ué! Mas essências gustativas não eram para ser saboreadas pela boca? Então a pessoa fica com vontade de tomar a água em que está imersa? Tal qual ocorre com os batons sabor chocolate, morango, melancia, uva, etc.? Diz o artigo que este ritual "virou um dos tratamentos de beleza mais procurados nas clínicas de estética".
Fico a imaginar que pessoas estressadas dos dias atuais não tenham tempo "nem pra se coçar", como se diz popularmente. Não parece um contra-senso pagar tanto para parar tudo, quando se fica em tal estado de stress justamente pela correria a que se impõe cada um de nós, por razões de afazeres mil, de crianças a adultos e até idosos? Lembro-me do quanto andamos de carro ou ônibus e depois temos que fazer caminhadas para lugar-nenhum, apenas para fazer exercícios. Coisas da pós-modernidade, assunto desta disciplina.
O que vimos em diversos textos abordados em aula e/ou lidos em casa, foi o modo de vida do ser humano na pós-modernidade: o quanto ele se volta para si mesmo, num narcisismo e hedonismo exacerbados, sobrevalorizando o próprio corpo, a aparência física, a beleza exterior, a eterna juventude, a saúde corporal, o momento presente.
Esta reportagem é um pedacinho disto, um retrato, em sentido abstrato e literal, do voltar-se para a qualidade de vida como ideal a ser buscado por meios os mais estranhos, desde que cientificamente comprovados e validados.
Continuemos com o artigo: "A novidade tem chamado a atenção de gente estressada, que aproveita o momento de relax para fazer tudo de uma vez (...)". Viu? Fazer tudo de uma vez continua na mentalidade pós-moderna. Nada de perder tempo, oportunidade. Afirma o artigo que quem fez a aromaterapia costuma dizer que o tratamento desperta "a libido ou acorda cada célula cansada do seu corpo". Hedonismo, narcisismo evidenciados aqui, ou não? Diz Jair Ferreira (1980) que no pós-moderno "as mensagens são criadas visando à espetacularização da vida, à simulação do real e à sedução do sujeito". Basta ser moda, continua o autor, para atrair os consumidores compulsivos, que aliás serve também para manter o sujeito mergulhado no presente. Afinal o sujeito pós-moderno não quer preocupar-se com o passado nem pensar no futuro. O importante é o agora, o presente. Não deixa de ser uma espécie de alienação da vida de um modo geral, mesmo os mais informados, escolarizados. A "adesão maciça dos indivíduos ao consumo", diz Ferreira (idem), revela o quanto se vive hoje à procura de espetáculos e bons serviços: Vida privada e lazer individual, não é o que propõe o artigo deste jornal?
Ferreira comenta que os valores foram trocados pelos modismos, os ideais, pelo ritmo cotidiano, com passos para a depressão e a melancolia (doença da vontade, último grau da apatia). Tanto voltar-se para si mesmo, não há como fugir do sentimento de vazio. Nesta apatia, o sujeito vai se tornando insensível, indiferente aos outros, porque só pensa em seu próprio bem-estar, sobretudo físico. Faz de tudo, e tudo ao mesmo tempo, de modo que está sempre numa agitação frenética, mesmo mantendo-se desmotivado para a vida, ou seja, não encontrando um sentido para a própria existência. É o que Ferreira chama de apatia desenvolta, ou seja, fazer muitas coisas e não encontrar sentido para elas, mantendo o não-entusiasmo de viver.
Jurandir Freire expressa este tema numa riqueza de detalhes impressionante. Ele costuma dizer que o sujeito pós-moderno desinveste na idéia do "próximo", pois não é mais interessante. Se o sujeito moderno esmerava pela disciplina do trabalho e da família, considerando tais esforços como nobres e como emblema da civilização e dos bons costumes, hoje em dia o progresso técnico e a sede de lucros levam a moral familiar à falência, de modo que uns lutam contra os outros. A impessoalidade, a indiferença substituíram a intimidade, já que prevalecem a reticência, o medo da concorrência, o medo da violência e o desejo de autoproteção. Ele também fala das terapêuticas diversas para os que dispõem de recursos monetários para isso, como um dos substitutivos das ideologias e utopias que costumavam guiar o homem moderno. Hoje em dia não há mais motivação para seguir ideologias. Perde-se na desistência de lutar e mergulha-se no narcisismo. É o que ele chama de "Busca do bem-estar eterno".
Em seu texto(Felicidade de pacotilha. Busca do bem-estar eterno se converteu no mal-estar da ética. Jornal Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, Domingo, 22 de setembro de 1996, p. 5-8.), menciona Illich, um pensador cristão austro-americano, que se relaciona com o artigo aqui mencionado, senão vejamos:
"A atual idolatria do corpo e das sensações, diz ele, é contrária à liberdade humana. Na contramão do hábito cultural dominante, afirma que a obsessão em sobreviver e evitar todo sofrimento a qualquer custo redundou em alienação do mundo e de si mesmo. Não temos, é claro, por que sofrer desnecessariamente ou abrir mão de ser felizes. Mas quando a felicidade se torna mero interesse pela sobrevida e pela busca incessante de prazer, o resultado é a perene insatisfação consigo, a indiferença para com o outro e o esvaziamento do próprio sentido da vida".
Considero que esta citação tem a ver com o artigo que escolhi para ser analisado neste trabalho, pois é exatamente a isto que ele se refere. Logo abaixo da matéria do jornal seguem dois anúncios, ambos sobre o mesmo tema. Dispensável repetir, pois o produto de consumo é a redução de medidas, tratamento para redução de gordura localizada, flacidez, maquiagem definitiva e produtos do mesmo gênero, todos voltados para a estética corporal, o aspecto externo, a forma física, o desempenho sexual, o medo de envelhecer, ficar feio, rechaçado. A esta preocupação excessiva consigo mesmo e com o corpo, Jurandir Freire (idem) chamou de exílio no próprio corpo, que ele compara com o comportamento da avestruz que se esconde da realidade ao redor de si. Ele acrescenta que esta ansiedade que mantém as pessoas numa atividade frenética sem direito a repouso físico ou mental constitui-se no próprio inferno em vida.
Mas longe de ser um pessimista austero, este autor propõe que existe a possibilidade do renascer dos bons sentimentos, dos bons relacionamentos, do voltar-se também para os outros, idéias estas que me enchem de esperança. Não podemos viver de condenar quem se esconde no vazio de si mesmo nem nos mergulhos de uma banheira relaxante. Afinal pode ser bem agradável também. Viver apenas em busca de tais prazeres é que não deve ser tão realizador assim. Suponho que os problemas tornam-se evidentes quando os meios se tornam fins em si mesmos. Eis a questão... mas
...Tudo vale a pena se a alma não é pequena. (Fernando Pessoa).


Referências Bibliográficas
COSTA, Jurandir Freire. Modos contemporâneos de subjetivação. Coletânea de textos capturados no site
http://www.jfreirecosta.com, para uso em sala de aula.
CRAVEIRO, Ma. Aparecida. Psicossociologia: um jeito próprio de compreender o humano. Texto para uso em sala de aula. Unicap. Pós-graduação. Especialização em Intervenções Clínicas, 1999.
FERNANDES, Ricardo. Sem qualquer vestígio de estresse. Diário de Pernambuco, Beleza. F3. Recife, 24 de setembro de 2006.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos – Uma Enciclopédia Crítica, 1994.

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