domingo, setembro 20, 2009





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O DIREITO À VIDA E A BIOTECNOLOGIA

The right to Life and the Biotechnology


Referênica deste artigo

Cordeiro, Fernando Antonio Sabino. Odireito à vida e biotecnologia. Revista da ESMAPE,Recife, v.13, n.28,p.213-242,jul./dez.2008.Especialista em Direito Público e Privado pela Faculdade de Direito de Pernambuco-UFPE. Juiz de Direito Titular da Comarca de Orobó-PE. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Pernambuco-UFPE. Juiz Eleitoral da 96ª Zona Eleitoral.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO: BIOTECNOLOGIA E NATUREZA HUMANA, QUESTIONAMENTOS ÉTICOS. 2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, MANIPULAÇÃO DE EMBRIÕES: ASPECTOS JURÍDICOS. 3. A PERSONALIDADE E A CARACTERIZAÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE. 4. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA. 5. CONCLUSÃO

RESUMO: O avanço da biotecnologia possibilitou a manipulação de embriões humanos. A discussão sobre o início da vida de cada ser humano envolve mais do que definições meramente pautadas na ótica da Biologia, mas envolve questionamentos éticos, teológicos e filosóficos. A dimensão da vida humana, à luz do Direito, requer o aprofundamento do conceito relativo à pessoa humana. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana abrange o próprio direito à vida como direito subjetivo primordial. O embrião não é apenas um projeto de vida humana, mas é uma etapa do desenvolvimento do ser humano, e como tal deve ser respeitado.

Palavras – Chave: Biotecnologia. Embriões. Vida, Direito.

ABSTRACT: The Biotechnology’s advancement has made possible the manipulation of human embryos. The discussion about beginning’s life of each human being involves more than definitions just based on the Biologic’s point of view, but it involves ethic, theological and philosophic quizzes. The human’s life dimension from Right’s perspective demands the deeper concept about human person. The acknowledgment of the dignity of the human person includes the own right to life as primordial subjective right. The embryo is not just a project of human life, but it is a step of development of a human being, and thus it must be respected.

Key-Words: Biotechnology. Embryos. Life. Law.

1.INTRODUÇÃO:BIOTECNOLOGIA E NATUREZA HUMANA- QUESTIONAMENTOS ÉTICOS

As mais recentes descobertas no campo da genética e da biotecnologia, com a possibilidade da clonagem humana, o desenvolvimento de técnicas de reprodução humana, reacendeu a discussão nos conceitos da concepção humana, da definição de pessoa, e necessariamente das implicações nos direitos da personalidade.

A identificação do genoma humano implica em diversos questionamentos entre os quais o do uso indiscriminado dos dados obtidos, com a conseqüente violação do direito à vida e a intimidade de cada pessoa.

A reflexão sobre as implicações morais, éticas, geradas pela tese de eliminação de embriões com doenças genéticas, com hemofilia, por exemplo, deve considerar o risco de promovermos uma autêntica eugenia, classificando as pessoas como normais, adequadas, inadequadas, úteis e inúteis. Existe o perigo da utilização destes dados no mercado de trabalho, na contratação de seguros, por exemplo.

A partir do momento em que o homem passou a compreender e dominar os mecanismos de surgimento e desenvolvimento do ser humano, nasceu a necessidade de discussão ampla do desenvolvimento de controles de natureza ética e legal.

Questionamentos nunca indagados ou jamais pensados exigem avaliações reais, trazendo a lume o descompasso das normas jurídicas ante o surgimento de novas relações humanas, decorrentes dos avanços da Biogenética, da Embriologia, da Biologia como um todo. Nestes casos, deparamo-nos com problemas de natureza ética e também relacionado ao Direito.

Há informes científicos de nascimento de bebês a partir de embriões que permaneceram congelados por doze anos e depois foram implantados no útero com desenvolvimento satisfatório[1]. Anteriormente, o máximo de tempo de embrião congelado para posterior implantação no útero materno fora de sete anos[2].

A BBC noticiou que uma mãe[3] no Canadá congelou os próprios óvulos a fim de que a filha[4] , com sete anos de idade, a qual tinha uma doença que não podia ter filhos, pudesse usá-los no futuro, e dar à luz um irmão ou irmã. O fato foi revelado numa conferência da European Society for Human Reproductiion and Embriology, em Lyon, na França. O Congelamento foi realizado por especialistas do MCGill Reproductive Center, liderada pelo médico Seang Lin Tan (ROBERTS, 2007: on-line).

A revista “Time” em uma de suas edições aborda o caso de uma fertilização ocorrida “in vitro”, em que o ser humano gerado tem patrimônio genético da doadora e do marido de uma outra mulher que recebeu o óvulo fecundado, em cujo seio se desenvolveu a gravidez (ELMER-Dewitt, 1990, p.40). Como escolher entre duas mulheres, cada uma se declarando ser a mãe da criança? O juiz Richard Parslow da Corte de Califórnia declarou que a maternidade seria atribuída à mãe que cedeu o material genético (TIFFT, 1990, p. 45). Esta é apenas uma das muitas situações ligadas diretamente ao conceito de pessoa, nas quais são rediscutidos os conceitos de concepção, de nascituro e os direitos de personalidade.

O embrião humano vivo, a partir da fusão dos gametas tem identidade própria, inclusive com patrimônio genético diferenciado do pai e da mãe, portanto, tem direito à própria vida, ainda que o seu desenvolvimento seja de forma gradual, mas coordenado e contínuo. A consideração do embrião humano como indivíduo humano, leva ao questionamento sobre a personalidade já que é insustentável a afirmação de inexistência de vida.

Embora haja desencontros, quanto às informações científicas, o fato é que no mundo inteiro as pesquisas caminham em busca do uso de células-tronco para fins terapêuticos discutindo-se ainda o seu uso em clonagens. Diante da possibilidade do uso de células-tronco embrionárias discutem-se as limitações nos campos biológicos, como por exemplo, a capacidade de desenvolvimento de câncer, nos aspectos éticos e religiosos, referentes à intangibilidade da vida humana independentemente de seu estágio de desenvolvimento.

Atravessamos uma fase situada entre a ficção científica e a realidade das terapias médicas de eficácia comprovada. Tudo isso demanda a necessidade de uma reflexão profunda sobre o tema da personalidade e da pessoa humana.

Os embriões usados atualmente em experiências provêm das fecundações realizadas em clínicas de fecundação in vitro. É preciso notar que na fecundação “in vitro” exige-se a formação de muitos embriões, todavia, apenas um será implantado no útero, os outros são descartados, porém conservados vivos em câmaras de baixíssima temperatura. Sabe-se que somente no processo de congelamento e descongelamento, trinta por cento dos embriões morrem[5].Não há ainda técnica capaz de evitar a perda de embriões durante o processo de congelamento.

Ainda assim a quantidade de embriões que pode ser obtida por este meio é totalmente insuficiente para as experiências que se realizam com as CTEH[6]. Por isso, outra linha de pesquisa existe hoje: a clonagem terapêutica.

Não se pode ainda afirmar com exatidão a possibilidade da clonagem humana para fins reprodutivos, mas nem por isso devemos não discutir o assunto, pois envolve a possibilidade de ser usada como técnica de reprodução artificial a exemplo do que já ocorre com os processos de inseminação artificial. Notamos que o enfoque dado na evolução dos direitos subjetivos da pessoa humana procurou nas últimas décadas avançar principalmente em relação aos direitos humanos como um todo, fácil notar o objeto final, isto é, a proteção da dignidade da humana, e neste ponto os direitos de personalidade exercem a tutela.

Dos mais diversos pontos de vistas, ético, moral, biológico, teológico, do direito, a indagação ante a complexidade do tema é por demais relevante porque o fenômeno da possibilidade de manipulação de material genético humano, com a conseqüente clonagem seja para fins reprodutivos ou terapêuticos, resultando na existência de embriões excedentes, leva-nos ao questionamento dentro do próprio direito, da problemática das raízes da existência humana.

2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, MANIPULAÇÃO DE EMBRIÕES: ASPECTOS JURÍDICOS

No plano constitucional não se pode ignorar a importância do tema ante a acolhida pelos textos constitucionais de normas em defesa da dignidade da pessoa, abrangendo a própria liberdade de ser e tutelando a pessoa humana como tal. A Constituição da República Federativa do Brasil consagra em seu preâmbulo os direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, como valores supremos. O art. 5º da Constituição também consagra o direito à vida: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direto à vida [...]”. A vida é tutelada, portanto é assegurado a todo material vivo esta tutela jurídica.

A sociedade organizada como estado de democrático de direito alicerça-se em valores éticos e morais reconhecidos pela própria sociedade, os quais serão assumidos pelo texto constitucional constituindo-se em princípios e direitos fundamentais, portanto, não podem ser contrariados nem desrespeitados. O Estado deve existir em função da pessoa humana, no sentido de que faça prevalecer o princípio da dignidade humana.

Vacval Havel[7] acerca do princípio da dignidade humana destaca:

Tomemos o conceito de dignidade humana. Ele permeia todos os direitos humanos fundamentais e os documentos relativos aos direitos humanos. Para nós, isso é tão natural que achamos que nem sequer faz sentido indagar o que realmente significa a dignidade humana, ou por que a humanidade deveria possuí-la, nem tampouco nos indagamos por que razão faz sentido que todos nós a reconheçamos uns nos outros e uns para os outros. As raízes mais profundas do que chamamos direitos humanos se encontram além e acima de nós, em algum lugar mais profundo do que o mundo dos contratos e acordos humanos. Elas têm sua origem no âmbito metafísico.

Ensina Oliveira Ascensão:

[...] A dignidade da pessoa humana implica que a cada homem sejam atribuídos direitos, por ela justificados e impostos, que assegurem esta dignidade social. Esses direitos devem representar um mínimo, que crie o espaço no qual cada homem poderá desenvolver sua personalidade. Mas devem representar também um máximo, pela intensidade da tutela que recebem [...] (ASCENSÃO, 1998:64).

A questão da dignidade da pessoa tratada no âmbito constitucional, remete-nos ao questionamento da manipulação de material genético, como por exemplo, o tecido humano, para fins de pesquisa.

Sérgio Ferraz, abordando a matéria da manipulação genética humana, aduz:

Estamos a lidar com questões que, praticamente na sua totalidade, se revelam despidas, entre nós, de trato normativo infraconstitucional. Em nossa opinião não há qualquer inconveniência que assim seja: por uma parte, a doutrina jurídica a respeito, ainda é extremamente parca e incipiente [...] ademais, parece inexistir, sobre tudo isso, um mínimo de consenso social, que pudesse comportar soluções legislativas." (FERRAZ, 1991, p.51).

Cabe a reflexão sobre o papel do Direito ante as técnicas utilizadas pela ciência e os princípios da bioética. De fato, a partir da filosofia Kantiana, a dignidade da pessoa humana, é um valor incontestável considerando o ser humano como um fim em si mesmo e nunca como meio para atingir determinado fim (Ferraz, 1991, p. 20).

As novas possibilidades científicas não implicam necessariamente valia ética, nem licitude jurídica, por isso não podemos perder de vista a assertiva de que as novas técnicas devem servir à pessoa.

Não se poderia atribuir legitimidade a um modelo jurídico que levasse em consideração somente o princípio do custo-benefício social, e desconsiderasse o princípio da autodeterminação individual, porque isto traria um paradoxo enorme por desprezar outros valores importantes e essenciais à vida em comunidade. As constituições modernas adotam uma hierarquia de valores tomando como referência a pessoa humana, ainda que voltadas para a procura do bem-estar social, ao proclamarem o valor intrínseco da pessoa, a qual deve ter condições de uma interação com a própria comunidade.

Numa sociedade alicerçada no estado de direito, os valores tidos relevantes por esta sociedade são assumidos pela Constituição. São elevados à condição de direitos ou princípios fundamentais, imutáveis e invioláveis, os valores éticos e morais situados como essenciais à sociedade.

Neste aspecto a Constituição da República Federativa do Brasil no seu preâmbulo proclama o Estado Democrático instituído com o fim, dentre outros de: “[...] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar [...]”. No art. 5º do texto constitucional acha-se garantido a inviolabilidade do direito à vida, como princípio constitucional centralizado na pessoa humana, como garantia da própria identidade e do próprio desenvolvimento. A identidade pessoal definida com direito de ser, como tal, abrangendo o respeito à imagem, à honra, à participação como pessoa nos seus mais diferentes matizes: ideológico, morais, sociais, religiosas.

3. A PERSONALIDADE E A CARACTERIZAÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

O Código Civil demarca o início da personalidade a partir do nascimento com vida, mas a partir da concepção reconhece os direitos do nascituro. Identificamos dois momentos distintos: a aquisição de direitos a partir da concepção e a aquisição da personalidade.

Ocorrida a concepção surgem os direitos dos nascituros, e a partir do nascimento com vida há o início da personalidade civil.

A partir do período do compreendido entre a concepção e o nascimento existem direitos ou expectativa de direitos? Anacleto de Oliveira responde que: “se o Código alude “aos direitos” do nascituro é porque lhe reconhece capacidade. "(FARIA, 1973, p.125).

Em ralação à pessoa humana, a personalidade como aptidão genérica compreende também o conjunto de caracteres da própria pessoa. Os direitos da personalidade são os relativos ao próprio ser humano, fazem parte da própria existência, como a vida, a liberdade, a identidade, a honra, a filiação, a intimidade.

O art.5º da Constituição da República Federativa do Brasil elenca alguns direitos da personalidade:

“X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas [...]”.

A caracterização dos direitos da personalidade envolve controvérsias. Admitir que sejam os relativos à pessoa, parece ser uma construção vazia, porque de fato os direitos se destinam às pessoas. Juristas com Puchata, Gierke, Koheler, Gareis, no século XIX, procuraram desenvolver uma teoria científica do direito da personalidade, sem, contudo satisfazerem ao conceito do termo personalidade (MORAES, 1984, p.15), assim termos como “esfera da personalidade”, modo de ser, não servem para conceituar em sua inteireza a essência do termo personalidade. Argüi-se em que consiste a personalidade enquanto aptidão genérica para ser sujeito ou pessoa. A pesquisa e a reflexão neste campo são imprescindíveis principalmente se considerarmos a existência de vida a partir da concepção.

Se não cabe ao Direito cercear o desenvolvimento científico, todavia, necessário é a normatização de parâmetros nos quais sejam assegurados os valores correspondentes à dignidade da pessoa humana os quais dizem respeito ao reconhecimento intrínseco e extrínseco da humanidade presente em cada pessoa.

Incursões na filosofia e na teologia tomista trazem elementos para entendermos melhor o conceito de direitos da personalidade. A utilização do termo “persona” significando indivíduo humano deu-se inicialmente no Direito Romano, todavia a pesquisa do conceito de pessoa como caracterizador do ser humano iniciou-se a partir da filosofia patrística. Na perspectiva da metafísica a relação de subsistência[8] e substância corresponde à relação entre os termos personalidade e pessoa (Morais, 1984, p.17). Santo Tomás define: “Persona [...]sgnificat id quod est perfectissimum in tota natura , sciliicet subsistens in rationali natura est rationalis naturae individua substantia”[9] ( AQUINO,1996,p.40 ).

Convém deixar demarcado que a personalidade não é um direito em si, mas um conjunto de atributos e aptidões da pessoa humana, ligada ao próprio viver do homem, dela decorrem direitos justamente como garantia do exercício deste poder ou para assegurar a possibilidade de exercer.

Na conceituação de direitos da personalidade, devem-se entender estes bens como parte integrante do próprio homem, como o corpo, a psique, a vida, porque dizem respeito à substância em si mesma, do ponto de vista jurídico desdobrados como direito à saúde, à integridade psíquica, à imagem, à liberdade, à dignidade, à intimidade e outros.

A ordem jurídica contemporânea identifica faculdades atinentes ao ser humano, na condição de indivíduos e de pessoa. Dentro desta perspectiva a doutrina classifica os direitos de personalidade em duas categorias de natureza geral: os direitos de personalidade adquiridos, e os direitos de personalidade inatos (Pereira, 1995, p.153).

Os direitos de personalidade inatos, doutrinariamente sustentados pelos naturalistas, são sobrepostos a qualquer ordem jurídica porque nascem com a condição humana, são direitos como a vida, a integridade física e moral, qualificam-se como absolutos, pois são oponíveis “erga omnes”, irrenunciáveis e intransmissíveis, pela vinculação ao próprio indivíduo, e imprescritíveis porque invocável a qualquer tempo independendo do uso (Gomes, 1999:158).

Quanto aos chamados direitos de personalidade adquiridos são considerados conforme o direito positivo disciplina e decorrem do “status” individual. No Direito Romano a condição “status civitatis” era requisito necessário para aquisição de direitos, também na Alemanha nazista, com o preconceito racial havia restrição à aptidão de jurídica em decorrência da raça, sem olvidarmos da época da escravidão em que o escravo era reduzido à coisa.

O Código Civil brasileiro não faz nenhuma distinção, em consonância com a Constituição Federal, considera a personalidade como um atributo da pessoa humana. Ressalte-se para evitar dúvidas que quando falamos em personalidade relacionando-se às pessoas jurídicas, dizemos que o termo é usado por similitude porque a personalidade no que se refere à pessoa jurídica resulta da denominada teoria da realidade técnica, onde se reconhece a existência dos entes criados pela vontade do homem, os quais no mundo jurídico existem como sujeitos de direitos e deveres, pela declaração de vontade e ou pela imposição da lei.

Na própria evolução da ordem jurídica encontramos o respeito à pessoa humana como conteúdo fundamental na razão de ser da norma jurídica. Nos estados democráticos de direito, os direitos do homem são núcleos identificadores da democratização do próprio direito. Dentro deste aspecto necessário a rediscussão de temas como o aborto e manipulação genética de material humano, nas mais diversas facetas quer do jusnaturalismo ou do juspositivismo, como correntes de pensamento do Direito.

4. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA

Ao buscarmos identificar o conceito de personalidade da pessoa natural ou humana, usamos este termo para diferenciarmos da pessoa jurídica, transportamo-nos para o conceito de pessoa, deste entendimento buscamos definir e entender a personalidade. A concepção clássica de pessoa, do ponto de vista jurídico, é o ente físico ou coletivo ao qual se pode atribuir direitos e obrigações (DINIZ, 1998, p.503).

Antes de tudo, teremos de considerar a identidade própria e “sui generis” do ser humano. A visão reducionista de observá-lo apenas com ser biológico, revela-se por demais incompleta, a ponto de desvirtuar o próprio conceito, isto porque há outros elementos componentes e insuperáveis do ser humano como a própria cultura, a espiritualidade, a dimensão psíquica e psicológica, as quais não podem ser ignoradas.

O termo pessoa não é biológico. Sua conceituação extrapola os limites das ciências naturais. Embora a Biologia determine com precisão o instante em que a vida se torna humana há evidentemente considerações de ordem filosóficas morais, e religiosas como são a do momento em que se constitui a pessoa humana (JOYCE, 1981, p.346).

A determinação, todavia, do início da vida, independe da Moral e do Direito, é uma realidade biológica. Cabe à Biologia definir este momento. A Ética e o Direito devem encontrar nos dados biológicos o princípio da existência da vida humana.

Ensina Pontes de Miranda: “Pessoa é apenas o conceito, o universal, com que se alude à possibilidade, no sistema jurídico de ser sujeito(PONTES DE MIRANDA, 1999, p. 215).

A palavra pessoa é proveniente do latim “persona”, aplicada à linguagem do teatro era sinônimo de máscara (BARROS MONTEIRO, 1967, p.58,59). “Persona” provém de “personare”, significando ecoar, fazer ressoar, a máscara que era a “persona” produzindo a amplificação da voz do ator ou atriz, os quais ocultavam a face.

Deste primeiro conceito de pessoa, com o passar do tempo, a palavra “persona” passou a significar o próprio papel desempenhado pelo autor, e posteriormente significou o próprio ator ou atriz (BARROS MONTEIRO, 196, pp.: 58,59). Pontes de Miranda, entretanto, sustenta que a expressão é de origem etrusca- phersu,designação aplicada à imagem etrusca de um dançarino mascarado (PONTES DE MIRANDA,1999,p.208).Não obstante , deve ser ressaltado o uso, pelos romanos, do termo “pessoa” indicando a máscara, referindo-se ao papel desempenhado pelo ator no teatro, como no drama, em Plauto e Terêncio,mas também usando o mesmo termo “pessoa” em relação ao status , à condição do indivíduo e o papel deste indivíduo na família e nas atividades sociais, como encontramos alusão em Cícero.

A personalidade em si é um atributo jurídico, uma aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações. Para fins deste estudo interessa-nos analisar a personalidade da pessoa natural.

O “Corpus Juris Civilis" e Lei das XII Tábuas já aludiam ao termo pessoa. Na idade média a noção de pessoa humana, por influência do pensamento católico, em oposição à distinção feita entre cidadãos e escravos, é tida como personificação da imagem e semelhança do Deus-Criador, destacando em cada indivíduo qualidades, e aptidões próprias da dignidade humana. Ampliou-se o conceito de pessoa a todos os homens (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p.156).

Entre os gregos já existia a noção de pessoa, todavia não como um conceito universal, as mulheres e escravos eram tidos com seres intermediários entre os cidadãos gregos e os animais.

Na evolução do pensamento ocidental, quanto ao significado da pessoa humana, ressalta-se a contribuição do cristianismo ao promover uma visão antropomórfica do homem com a distinção da criatura de forma qualitativa do criador. Afirmou-se a centralidade, univocidade e dignidade originais do homem como subjetividade no mundo, ultrapassando a simples objetividade (PALLAZANI, 2007, p.94).

Destaca-se o pensamento de Tomás de Aquino, na idade média, como filósofo cristão, proclamando a singularidade da pessoa, de todos os demais seres pela sua completude, incomunicabilidade especialidade e racionalidade (Aquino, 1996: Q 29, A3).

Na idade moderna encontramos a filosofia personalista, iniciada por Kant, passando a pessoa ser entendida como ser autônomo, dotada de vontade própria, determinando-se conforme a razão ao agir, livre do determinismo das forças da natureza.

Wiethölter leciona: "Per Kant I`uomo é persona, per quanto riguarda I suoi doveri nei confronti degli altri, ed è personalità ("umanità"), per quanto riguarda i doveri nei confronti di se stesso, uma personalità la cui moralità constituisce la dignità dell`uomo, di cui l`autonomia è il fondamento"[10] (WIETHÕLTER, 1974,p. 112-114).

No pensamento ocidental, podemos considerar que a descoberta do “eu”, como pessoa, englobando a alma e corpo, elementos indissociáveis, é recente. O reconhecimento e a preservação da pessoa ocorrem quando se identifica um valor moral no “eu” e no “outro”, como valor supremo inerente a todos os seres humanos (LEITE DE CAMPOS, 1992, p.9-10).

Cabe a reflexão sobre o papel do Direito ante as técnicas utilizadas pela ciência e os princípios da bioética. Verificamos nos mecanismo de proteção à integridade física, moral, à própria dignidade do ser humano, um aspecto filosófico, isto é, todas estas normas de proteção ao ser humano, visam no fundo proteger a própria existência, ora assim sendo não se pode reduzir o corpo a simples objeto, pois não se trata de objeto e sim da própria existência. Neste aspecto surge a dificuldade de avaliarmos a licitude da existência de atos jurídicos lícitos cujo objeto, o corpo humano, não pode ser considerado como objeto.

Cabe ao Direito estabelecer as condições mínimas em que se busquem assegurar a compatibilização entre os avanços da ciência, com a ruptura de paradigmas e a continuidade da humanidade e do reconhecimento do próprio ser humano, em sua essência, em sua dignidade, assegurando-lhe valores a serem respeitados (COSTA, 2001, p.18).

Kant diferenciou pessoa de indivíduo, a noção de pessoa é de uma gradação superior, constituindo-se de um corpo e de uma estrutura psíquica, como um indivíduo, sem, todavia reduzir-se a essa estrutura. O animal irracional submete-se totalmente à condição psicofísica da própria realidade, diferentemente, a pessoa como ser racional, tem consciência de sua liberdade e busca a autodeterminação (KANT, 1964:56). O ser humano ultrapassa o agir só por instintos, que busca somente a satisfação meramente biológica e de reprodução, mas, ressalta Freud, há uma força característica do ser humano denominada por ele de energia pulsional, inscrita no núcleo do inconsciente, e que traz registros situados entre o biológico e o psíquico.

Com o surgimento do positivismo jurídico ocorreu a colocação do direito dentro de parâmetros objetivos, passando-se a interpretações axiomatizáveis. Dentro deste contexto a noção de pessoa é reduzida à personificação de um conjunto de normas, centro de imputação. Na concepção de Kelsen a “pessoa” é uma construção da ciência do direito (MATA-MACHADO, 1953:45).

Com o passar do tempo surgiram novas concepções da expressão “pessoa” abandonando-se a posição positivista ou apresentando versões mais atenuadas, evoluindo para o conceito de pessoa com ser livre que se propõe a determinados fins (RECASÉNS SICHES, 1970:245-259).

Colocados nestes termos o conceito de pessoa, identificamos a personalidade com a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações próprias da pessoa humana, estendidos a entes morais ou ideais reconhecidos pelo Direito (Pereira, 1995, p.142).

Pontes de Miranda, em relação ao conceito de pessoa, afirma: “é a capacidade de ser titular de direitos, pretensões, ações e exceções e também de ser sujeito (passivo) de deveres, obrigações, ações e exceções” (PONTES DE MIRANDA, 1999, p.209).

A doutrina distingue os termos capacidade de direito e capacidade de fato. A capacidade de direito ou de gozo, inerente a cada ser humano, é a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações, enquanto a capacidade de fato é a possibilidade de o indivíduo exercer por si mesmo os atos da vida civil tendo plena consciência dos seus atos e livre na manifestação de vontade (DINIZ, 1986, p. 86).

Desta distinção podemos constatar a existência de limitações quanto ao exercício dos direitos oriundos da personalidade impostos pela lei em decorrência de situações próprias do ser humano, como a menoridade, a incapacidade relativa ou absoluta, em que o titular do direito deverá ser representado. Dentro deste raciocínio temos a existência da capacidade de direito ou de gozo com pressuposto para a subsistência da capacidade de fato.

O dissenso da conceituação do termo “pessoa” na atualidade, embora desenvolvido ao longo das décadas, encontra-se permeado pelas conseqüências do significado em termos ideológicos. Chegamos a uma unanimidade em garantir à pessoa humana, respeito, proteção e reconhecimento em sua dignidade. Estas garantias morais e jurídicas, decorrentes do conceito de pessoa refletem-se nas relações com a Bioética e com a Engenharia Genética.

Aduz Laura Pallazani: “O apelo à dignidade e aos direitos da pessoa, que ninguém pensaria serem subscritos imediatamente e sem reservas por todos, de fato encerra inúmeras ambigüidades que merecem e até exigem cuidadosa elucidação”. (PALLAZANI, 2007:99-100). Este fato deve-se ao dissenso no conceito teórico de pessoa e à aplicação empírica decorrente deste conceito.

5. REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DO INÍCIO DA VIDA HUMANA

As diversas polêmicas trazidas a lume pelos doutrinadores, quanto ao início da vida humana, e suas reflexões quanto aos direitos fundamentais, notadamente no que diz respeito ao uso de células-tronco embrionárias, aborto de nascituros anencéfalos, descriminalização do aborto têm como ponto de partida a identificação do início da vida de cada ser humano, e a distinção do que deve ser tido como ser humano ou se existe apenas um amontoado de células. Biólogos, geneticistas, juristas, defensores e opositores da tese de experiências com células-tronco embrionárias identificam indícios, princípios e limites para o início da vida humana.

No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade[11] o STF possibilitou o uso de células-tronco embrionárias congeladas para uso em experiências com objetivos terapêuticos.

Num conceito meramente funcional a identificação do ser humano como pessoa dar-se-ia conforme o ser humano apresentasse características, forma, sinais de aparência de pessoa tal qual conhecemos ou identificamos cotidianamente um pessoa.

Noutra visão a realidade do ser humano é reconhecida independentemente de manifestações ou sinais externos, mas a partir da concepção segundo a definição da Biologia.

Ao lado das divergências surgidas, suscitando debates apaixonados ou de interesses inconfessáveis, sob abrigo consciente ou inconsciente das mais diversas ideologias, muitas das quais marcadas pelo ranço do totalitarismo, seja de esquerda ou direita, percebe-se um nítido movimento de colocar o debate científico para segundo plano e adota-se o conceito das soluções mais fáceis segundo os interesses de cada grupo.

Ao observamos dentro dos critérios trazidos pela Biologia, ao usarmos como método a observação detalhada da formação do desenvolvimento inicial do ser humano chegamos à conclusão cientificamente comprovada que a vida humana começa com fecundação do óvulo pelo espermatozóide (CABALLOS, 2007, p. 337).

A Biologia define ontologicamente o que é um ser humano? Eis a indagação, mais ainda, define o que seja um ser vivo?

Argumenta Antonio Caballos em interesante posicionamento sobre o assunto: “Para delimitar lo que es un ser vivo no se puede partir de la biología. Ésta es la ciencia que estudia los seres vivos. Portanto, antes de comenzarla debemos saber qué es un ser vivo, y la biología (inexistente en este momento de la pesquisa) no puede responder esa pregunta, pues su desarrollo supone ya una respuesta inicial”. (CABALLOS, 2007, p. 339).

Quando partimos da mera observação para classificarmos o “ser vivo”, usamos a Filosofia, e encontramos uma série de características para identificá-lo tais qual o poder de ter o próprio movimento, a unidade, morfologia própria, busca de fins próprios.

Mover-se por si só deve ser entendido na concepção tomista, como integrante da natureza do ser vivo, da própria capacidade, de dar impulso ao seu próprio desenvolvimento, não quer significar literalmente e restritamente o ato de mover-se de um local para o outro, mas relaciona-se com as atividades impulsionadas internamente pelo próprio ser, como a nutrição, o metabolismo, a respiração, a locomoção.

A unidade, como característica do ser vivo, encontra-se relacionada ao fato de que cada órgão, cada sistema, cada parte, encontrada no ser vivo não pode subsistir por si mesma, mas forma um todo, um conjunto, uma “unidade” numa interação constante. Se separarmos um braço do corpo humano, por exemplo, o braço não terá vida própria.

A morfologia, isto é, o fato de o ser vivo ter uma forma especial, mas esta forma envolve não somente a estrutura tal qual é apresentada em seu interior, mas, implica diversas concepções, mesmo de cunho filosófico, e não é suficientemente segura para identificarmos o ser vivo.

Na busca de definição de “ser humano não podemos nos limitar apenas aos atributos, a um aspecto, a uma afirmação simples e incompleta de que o homem se reduza apenas a um indivíduo da espécie “homo sapiens”. Esta resposta dada pela Biologia, serve apenas para diferenciarmos-nos de outras espécies, porque nada aduz quanto ao caráter pessoal de cada ser humano. O ser humano traz consigo uma peculiaridade original, o que exclui a concepção de ser um mero exemplar de uma espécie, esta característica própria é o que denominamos pessoa. Não se refere apenas à concepção genética, nem somente ao fato de ser único, sem repetição, nem à individualidade da espécie, porque outros seres vivos também possuem estas características, mas é algo inerente à qualidade de ser pessoa (SPAEMANN, 2000, p.37).

A Biologia e a Medicina não deixam dúvidas quando ao início da existência de vida a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Não se trata de uma teoria, é algo que se pode verificar. Não obstante esta constatação surgiram teses avalizadoras da existência de um estágio inicial denominado “´pré-embrionário”, embora existindo vida não se pode dizer que há um ser humano.

Na perspectiva jurídica, discute-se o momento de atribuir personalidade ao ser humano considerado biologicamente vivo. Paralelamente a estes conceitos e definições de vida humana trazidos pela Biologia e tomados “emprestados” pelo Direito, não se pode olvidar a realidade multidimensional do ser humano, a qual se manifesta de modo progressivo, e não constitui óbice na identificação do momento em que cada ser humano gerado passa a existir.

A Biologia, entretanto, desenvolve métodos e conceitos para definir estruturas e funcionamentos dos seres vivos, sem definir ou conceituar o dinamismo intrínseco deste ou daquele ser vivo. Na realidade o que a ciência biológica estuda é a estrutura, o funcionamento das células, tecidos, sistemas que compõe o ser vivo, apresenta-nos os componentes, funcionamentos, conteúdos, mas não chega a conceituar o “que é”, o “ser”, porque esta conceituação não é o objeto da Biologia.

A distinção entre o ser vivo, e outra coisa qualquer tem como objeto de comprovação científica a forma, a composição, o funcionamento interno, sem, no entanto definir o que é um ser humano.

Como verificar qual é aparência do ser humano ainda em fase embrionária? Necessário tomarmos um ponto de referência. Quando buscamos a resposta na embriologia porque aquele material em observação é humano, temos como premissa a origem do material biológico, isto é, é humano porque se originou de seres reconhecidamente humano. Identificada a procedência concluímos que é humano.

O questionamento vai além de sabermos se é humano ou não, precisamos saber se aquele óvulo fecundado tem uma vida completa, se é uno, se é um indivíduo ou se é apenas um amontoado de células humanas.

O que é o homem afinal? Encontramos as mais diversas teorias a esta pergunta, nos mais diversos campos do conhecimento humano, a resposta não se reduz a uma mera característica: um ser da espécie “homo sapiens”. Na realidade quando classificamos um homem adulto e um embrião como seres humanos partimos de um conhecimento prévio, natural, da mesma forma que reconhecemos um cavalo, a partir do conhecimento que tenhamos do que seja um cavalo, caso contrário apenas poderíamos dizer de que se trata de um ser vivo.

Na identificação do embrião com ser humano partimos do reconhecimento indireto, sabemos que se trata de algo humano porque provém de seres humanos, logo não há dúvida de que o embrião seja humano, o questionamento é quanto à existência de uma vida completa (CABALLOS, 2007:342).

Verificamos que a maioria das teses reduz o questionamento ao aspecto genético, a uma análise científica, mas esta análise científica é limitada. Uma análise genética, meramente científica, teria que partir de um raciocínio indireto, qual seja a identificação do homem, mas o patrimônio genético por si só não contém a fórmula do que seja o homem.

As diversas manifestações do caráter da pessoa humana recebem influências dos mais diversos fatores tais como educação, enfermidades, crenças dentre outros, estas manifestações consideradas em decorrência da razão também não são suficientes para comprovar-se que tal ser pertence à espécie humana.

O discernimento buscado para lidar com a própria vida humana, evidencia a necessidade de questionamento da consistência de valores na origem dos juízos de valores, a fim de identificarmos os critérios de distinção entre a licitude e as técnicas usadas e possíveis. Destaca-se com maior profundidade a questão da verdade aplicada ao homem como ponto de referência (SGRECCIA, 2000, p.21). As questões fundamentais envolvem necessariamente a vida da própria humanidade, e não podem ficar a mercê de simples posicionamentos de natureza individualista, como os caracterizados na ética liberal.

A liberdade de escolha quando envolve a própria vida de seres humanos em condições mais frágeis, não pode prescindir do valor fundamental do ser: a vida. A crítica cabível é de que não é simplesmente o que maioria “acha” ou “pensa”, nem o estabelecimento do que é ético e não ético, pela vontade intersubjetiva, quando se trata da vida humana, porque não se justifica a negação da perspectiva metafísica e da realidade do próprio ser humano. Mostra-se cada ser humano como realidade única, inclusive do ponto de vista genético, e, portanto deve caber-lhe a garantia de existir e realizar toda a potencialidade da essência existente em cada ser. Doutrina Elio Sgreccia: “É na eticidade que a ontologia se encontra com a ética, a ontologia com a doxologia, e o homem é chamado a tornar-se o que é: a encher de ser a própria essência”. (SGRECCIA, 2000, p.29).

A tomada desta posição não representa a dedução da ética pela metafísica, mas significa a necessidade da ética tomar em consideração a definição e a ontologia do homem, porque é neste caminho que se situa a descoberta da dignidade, do valor, da grandeza, das limitações, e capacidades do ser humano.

O professor Daniel Serrão, membro do Comitê de Bioética Europeu, “apud” Laura Knapp, abordando o assunto da manipulação da vida humana, ensina que a vida humana tem um programa porque está identificado e guardado no genoma:

[...] quando metade da informação feminina e metade da informação masculina se juntam, criam uma informação específica, criam um genoma. Assim, instala-se uma vida humana, porque no genoma está o projeto de desenvolvimento do indivíduo. Não há nenhuma diferença entre o valor do embrião e o valor humano do embrião quando sai do útero (KNAPP, 2001: A12).

Ele é uma vida humana, um projeto de vida. Poucos minutos após a fecundação, constituem-se os 46 cromossomos e, ali, dá-se o início da vida, acrescentando: “Isto é verdade científica.” Posteriormente há o desenvolvimento do ser humano com a diferenciação pelas combinações genéticas e pelas influências que recebe do ambiente, pois o meio exterior à célula também exerce influência sobre a informação do DNA. Cita como exemplo um esquimó que é biologicamente adaptado para viver numa casa de gelo, diferentemente de outra pessoa que vive em clima quente. Deste modo há vida humana, mesmo no seu estado inicial, como embrião, não existe nenhuma diferença entre o valor do embrião e o de um homem formado, pois se trata sempre de uma vida humana. “Todo o jogo da renovação da vida passa através da sobrevivência. Todo corpo tem direito à sobrevivência. É um direito biológico. Quem destrói uma vida humana ofende a própria dignidade biológica do ser humano.” (KNAPP, 2001: A12).

Adverte Hannah Arendt apud Regina Sauwen e Severo Hryniewicz:

A história política recente está repleta de exemplos indicativos de que a expressão ‘material humano’ não é uma simples metáfora inofensiva. O mesmo se pode dizer das inúmeras experiências científicas modernas no campo da Engenharia Social, da Bioquímica, da cirurgia cerebral etc. Todas visando manipular e modificar o material humano como se tratasse de qualquer outro material. Essa atitude mecanicista é típica da era moderna (SAUWEN, HRYNIEWICZ, 1997, p. 47).

A fim de que sejam fixados padrões éticos precisa-se de princípios e valores compartilhados universalmente, próprios da natureza humana, porque senão encontraremos meros acordos de caráter simplesmente procedimental, em que se buscam aperfeiçoamento de mecanismos, sem considerar a dignidade humana. Neste sentido denuncia a doutora Claudia Navarini[12] :

Assim o debate atual sobre o tema das células-tronco embrionárias considera ultimamente o estatuto do embrião humano, a dignidade de todos os homens, o direito à vida em qualquer idade e em qualquer condição (cf. C. Navarini, Staminali embrionali: criteri etici, fatti scientifici e desideri ideologici, ZENIT, 3 de julho de 2005). A comunidade científica, ao contrário, alimenta-nos com banais instruções para o uso. E as chama «código ético» [13].

Ensina Magalhães Noronha ao referir-se à vida humana: “[...] Em seu infinito mistério merece respeito, mesmo quando a ordem jurídica se encontra em presença, não apenas de um homem (pessoa), mas de uma spes hominis [...]”. (NORONHA, 1978, p 61).

José Tavares ilumina o tema: “Mas porque a personalidade jurídica do homem é atributo do próprio ser, necessário à garantia dos seus legítimos interesses, e, pois que ele e estes existem desde o facto da concepção, é a este que nós preferiríamos atribuir a origem da personalidade” (Tavares, 1928,p. 13-14).

Santos Cifuentes ensina: “[…]En otras palabras, el derecho personalísimo principia en la fecundación del óvulo feminino, instante esse en que aparece un nuevo ser de la especie com vida propia aunque dependiente […]”.[14](CIFUENTES, 1974, p.182).

H. Tristram Engelhardt Jr. afirma: “[...] somente aquelas entidades que podem consentir em algo, que podem transmitir autoridade moral em relação a elas mesmas e a suas posses são denominadas pessoas [...]” (ENGELHARDT, 1998, p.310). No sentido de que do ponto de vista ético deve prevalecer o fato de se tornar pessoa com o ingresso do ser humano na “comunidade moral”, em relação ao fato do nascituro, abrangendo, zigotos, embriões e fetos, parece-nos discriminatórias porque não existem dois tipos de seres humanos: um ser humano “pessoa”, capaz de refletir e agir; outro indivíduo “não pessoa”, sem capacidade de refletir e agir, portanto podendo ser objeto de reflexão e manipulação.

O valor intrínseco do ser humano não pode ser omitido como na teoria apresentada por Engerhaldt, não se podendo por este motivo reduzirmos a dignidade da pessoa humana ao estágio de desenvolvimento em que se encontra. Ensina Boaventura Santos: "as pessoas têm o direito a ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza (SANTOS, 1977, p.122)".

A questão do diagnóstico pré-implantatório do embrião representa também o rompimento em sua gênese da relação pais-filhos, e constitui-se em autêntico ato de violência, pois simplesmente elimina o ser humano num estágio de vida fragilizado, com necessidade de maiores e melhores cuidados, numa visão unicamente utilitarista, cujos resultados são conhecidos da humanidade. Desta forma o respeito de um ser humano para com outro ser semelhante é posto em segundo plano, viola definitivamente o princípio universal do direito do reconhecimento da igualdade e da dignidade ontológica de todos os seres humanos, sujeitos de direitos.

5. CONCLUSÃO

“Ser humano” não é um termo meramente biológico justamente porque a realidade que designa não é meramente biológica, embora seja também biológica. Identificar seres humanos a pessoas humanas não é biologismo, mas precisamente o contrário: é uma afirmação implícita de que o ser humano, além de sua realidade biológica, comporta uma essência que é a forma substancial do corpo humano. Se um robô fizesse tudo que uma pessoa faz, nem por isso se tornaria uma pessoa, pois lhe falta a essência da pessoa humana.

A vida entendida em qualquer dos seus aspectos deve ser protegida, e não se pode conceber sob o argumento de manutenção de uma vida a eliminação de outra vida, não nos parece que este seja o verdadeiro sentido da liberdade. Não é assim, nem por este motivo que conceitos jurídicos como legítima defesa, estado de necessidade, evoluíram ao longo do tempo.

Não se pode reduzir a vida à visão utilitarista, porque o termo vida por ser tão abrangente, continuará a ser indefinido.

O zigoto não pode ser considerado apenas como um projeto de ser vivo, a clarividência biológica comprova exatamente o contrário, já é um ser humano. Não é como um projeto qualquer de uma casa, por exemplo, de modo que destruir a casa não é destruir o projeto, enquanto que se admitirmos que o zigoto seja coisa poderemos destruí-lo, mas estaremos eliminando uma vida, no significado mais sublime do termo, porque é uma vida humana individualizada, única.

Se o Direito não quer perder a sua razão de ser, não pode abster-se de proteger a vida humana em todas as etapas de seu desenvolvimento, sobretudo no momento em que a vida é mais débil, quando o ser humano por si mesmo não tem capacidade de exercer próprios direitos.

A exigência de que para ser reconhecido plenamente como ser humano é necessária a demonstração de atributos humanos significa o retorno e aceitação de conceitos já ultrapassados pela humanidade, como a justificação da morte de seres humanos classificados como “inviáveis” ou sem nenhuma potência própria de proteção.

O critério de humanidade fundamentado apenas na potência e na viabilidade do organismo humano, contraria a informação, de natureza biológica, da caracterização do “humano”, pelas características genéticas e pela expressão orgânica, além de estabelecer o risco do casuísmo e da negação da vida humana como direito natural e universal.


[1] A. Revel, A. Safram, N. Laufer, A. Lewin, B. E. Reubinov, A. Simon, Twin delivery following 12 years of human embryo cryopreservation: Case report, Human Reproduction 19, p. 328, 2004.

[2] S. Ben-Ozer, M. Vermesh, Full term delivery following cryopreservation of human embryos for 7.5 years, Human Reproduction 14, p. 1650, 1999.

[3] Melanie, advogada .

[4] Flavie Boivin, acometida da Síndrome de Turner.

[5] J. Toner, Transfer of Frozen Embryos into a Surrogate’s Natural Cycle, disponível em :
http:www.surrogacy.com/medres/article/frozvsn.html.

[6] Células-tronco embrionárias humanas.

[7] Vaclav Havel , dramaturgo e estadista tcheco. O Tribunal da humanidade. in Folha de S.Paulo, de 28.06.1998, p. A-3.

[8] Aptidão para ser sem dependência. Independência própria da substância, a qual é em si e não em outra coisa.

[9] A pessoa é uma substância, subsistente, individual de natureza racional.

[10] "Para Kant, o homem é pessoa, no que tange aos seus deveres em confronto alheio, e é personalidade ("humanidade") no que se refere aos deveres, nos confrontos consigo mesmo, uma personalidade cuja moralidade constitui a dignidade do homem, na qual a autonomia é o fundamento". Kant afirma ainda, que o homem é pessoa, porque é "fim em si mesmo", isto é, tem um valor autônomo e não só um valor como meio para algo de diverso, daí resultante a sua dignidade. Donde decorre a norma segundo a qual "cada homem tem o direito ao respeito dos seus semelhantes e reciprocamente é obrigado a ele em face dos outros.

[11] ADIN-DF 3.510-0

[12] Docente da Faculdade de Bioética do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum.

[13] A dúbia ética das células-tronco embrionárias: http://www.zenit.org/portuguese/, acessado em 8/03/2006. Texto originalmente publicado em Zenit italiano no dia 5 de março de 2006, na seção Bioética. Traduzido por Zenit

[14] Em outras palavras, o direito personalíssimo principia com a fecundação do óvulo feminino, instante esse em que aparece um novo ser da espécie com vida própria embora dependente.





REFERÊNCIAS

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